VOTO FUNDAMENTADO DO JUIZ A. A. CANÇADO TRINDADE
1.
Ao votar a favor da adoção da presente Sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso das Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana, com a qual estou
basicamente de acordo, vejo-me na obrigação de agregar, no presente Voto Fundamentado,
algumas breves reflexões pessoais sobre o tema central do cas d'espèce, porquanto esta é a
primeira vez em sua história que a Corte Interamericana se pronuncia, na resolução de um
caso contencioso, sobre o direito à nacionalidade de acordo com a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos. Permito-me, pois, abordar no presente Voto três pontos centrais, - aos
quais atribuo particular relevância, - da matéria em questão, a saber: a) os avanços
normativos em matéria de nacionalidade e a preocupante persistência das causas da apatridia;
b) a reação do Direito à alarmante diversificação das manifestações da apatridia; e c) o amplo
alcance dos deveres gerais de proteção (artigos 1(1) e 2º) da Convenção Americana.
I.
Os avanços Normativos em Matéria de Nacionalidade e a Preocupante
Persistência das Causas da Apatridia
2.
Ao longo das três últimas décadas, vim afirmando que não existe matéria que, por sua
intrínseca natureza, pertença ao domínio reservado do Estado, ou à sua competência nacional
exclusiva. O locus classicus para o exame da questão continua residindo no célebre obiter
dictum da antiga Corte Permanente de Justiça Internacional em seu Parecer Consultivo sobre
os Decretos de Nacionalidade na Tunísia e no Marrocos (1923), segundo o qual a determinação
de se um assunto recai unicamente ou não na jurisdição de um Estado é uma questão relativa,
que depende do desenvolvimento das relações internacionais. 1 Em realidade, este
desenvolvimento, em matéria do direito à nacionalidade, efetivamente subtraiu a matéria da
competência nacional exclusiva e a alçou há muito tempo ao plano da ordem jurídica
internacional.
3.
Definitivamente, o tema da nacionalidade não pode ser considerado através da simples
ótica da pura discricionariedade estatal, pois sobre ele incidem princípios gerais do Direito
Internacional, bem como deveres que emanam diretamente do Direito Internacional, como,
v.g., o dever de proteção. Encontram-se, pois, a meu juízo, inteiramente superadas certas
construções em matéria de nacionalidade (original ou adquirida) da doutrina tradicional e
estatocêntrica, tais como, v.g., a da possibilidade estatal ilimitada, a da vontade estatal
exclusiva, a do interesse único do Estado, bem como a teoria contratualista (uma variante do
voluntarismo). Para esta superação contribuíram decisivamente o aparecimento e o impacto do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
4.
Ainda no plano do direito interno, a aquisição de nacionalidade é uma questão de ordre
public, que condiciona e regulamenta as relações entre os indivíduos e o Estado, mediante o
reconhecimento e a observância de direitos e deveres recíprocos. A atribuição de
nacionalidade, matéria de ordem pública, tem sempre presentes, no plano do direito interno,
princípios e deveres emanados do Direito Internacional, como testemunho da interação ou
interpenetração dos ordenamentos jurídicos nacional e internacional.
5.
Há mais de um quarto de século antes da adoção da Convenção para a Redução dos
Casos de Apatridia (1961), afirmou-se (ainda que em atenção apenas à necessidade de
avanços no Direito Internacional convencional e deixando de tomar em conta também o Direito
1
A.A. Cançado Trindade, O Direito Internacional em um Mundo em Transformação, Rio de Janeiro, Edit.
Renovar, 2002, pp. 413 e 475; e cf., para um estudo geral, A.A. Cançado Trindade, "The Domestic Jurisdiction of
States in the Practice of the United Nations and Regional Organisations", 25 International and Comparative Law
Quarterly - Londres (1976) pp. 713-765.